15 Fev DIA #3
A ilusão das fronteiras [ou T por S]
Algeciras (Espanha) – El Aouamra (Marrocos) [161 km]
O dia começou com a possibilidade de a intensidade do vento diminuir e podermos, finalmente, fazer o percurso que, quando vou às escolas apresentar o projecto, mais causa estranheza e, às vezes, desconfiança. Como é que passaste de Espanha para Marrocos? Não deixa de ser interessante perceber que o caminho mais fácil e em que nada temos de fazer é o que levanta mais questões.
Depois de uma grande incerteza, e no meio de todas as travessias registadas como canceladas, surge nas informações um ferry com a indicação “À espera de confirmação”. Apesar deste bom presságio, com quem íamos falando diziam que não se acreditavam que durante, pelo menos mais um ou dois dias, iria haver travessia. Mas teríamos de esperar.
Ser obrigado a esperar é a forma mais rápida de envelhecer e a mais lenta de viver. Grande parte do mundo vive em espera. Esperam pela chuva, pela paz, ou que o corpo recupere. Em contraste, demasiadas pessoas vivem numa urgência de definir o que lhes pertence e, por isso, dividem pedaços de terra através de fronteiras. A cada um destes pedaços atribui-se nomes com o objectivo de lhes concedermos características especiais. Acredita-se que por dar-se o nome de um pássaro a um peixe, este possa voar. Estas fronteiras são membranas rígidas que definimos pela nossa ilusão de “ter”. Colocamos o “ter” à frente do “ser”. Sem fronteiras, nada nos pertence.
Surpreendentemente, inverte-se esta noção quando, através das nacionalidades, as pessoas pertencem à terra, mesmo sabendo que esta mesma terra pertence a umas outras poucas pessoas. Esta transitividade é uma nova forma de escravatura, mas em que a alternativa de não pertencer é a maior forma de abandono.
Para mim, a grande fronteira é a superfície por onde caminhamos e que separa o céu da terra. Obviamente, o céu não está a mesma altura para todos. Para mim, o céu inicia-se ligeiramente acima do meu braço quando o aponto para o sol.
Como queríamos muito atravessar para África, fomos fazendo fila antes de recebermos a confirmação da passagem. Os funcionários do Porto foram ordenando quem chegava antecipadamente em filas da esquerda para direita. Foi nessa espera que recebemos a confirmação que haveria travessia. Tudo parecia estar finalmente a encaminhar-se para bombordo.
Os problemas começaram quando perto da hora da partida, talvez pela escrita ser da direita para a esquerda em Marrocos ou porque os últimos são sempre os primeiros, começaram a colocar dentro dos barcos os carros pela ordem inversa de chegada. Os agentes responsáveis pela saída das viaturas, questionados pela decisão, disseram-nos para não nos preocuparmos que todos iriam ter lugar. A primeira pessoa da fila disse-me, muito calmamente “Quel bordel!”. Os problemas começaram quando, afinal, disseram que já não havia lugar para todos. Os carros e as pessoas, que até aquele momento, tinham estado irrepreensivelmente calmos, começaram a sair das suas filas de forma completamente desordenada e por pouco não fomos atropelados. Estava a ver que ainda ia preso quando disse ao Guarda que aquilo parecia um país do terceiro mundo. Respondeu-me que não lhe devia gritar e que a Espanha era um país de primeiro mundo. Reforçou-se que eu tinha dito que parecia. Não tinha dito que era.
De certa forma, considero irónico a péssima escolha das minhas palavras. A forma como eu cataloguei aquilo que defendo que não se deve catalogar. É importante repensar nossa linguagem porque esta tem um peso muito maior do que pensamos. Já agora, não gritei ao senhor Guarda, embora confesse que não lhe cantei uma balada.
Depois da travessia chegaram à alfândega marroquina os carros acumulados de 3 dias. Todos os carros tinham de ser revistados e passados numa lenta máquina de raio-x. A Blatt não foi excepção. Este processo demorou mais de 3 horas. Felizmente, o resultado do raio-x chegou e estava tudo bem, embora o guarda nos disse que tínhamos bolas a mais [Sem segundas intenções].
Assim, só às 3h30min da manhã começamos a quebrar a nossa regra #1: não conduzir de noite. Foram 2h30min pelo meio da escuridão que terminaram numa estrada no meio do mato tão estreita que tivemos de ir a pé para perceber se a Blatt passava. Felizmente, apesar de já serem quase 6h da manhã, estava gente para nos receber. Dormimos num sítio lindíssimo, junto a um lago, mas isso, só soubemos no dia seguinte.
Foi um dia cheio de pressa, mas é importante repensarmos as nossas urgências. A urgência é sermos humanos.